UMA BREVE HISTÓRIA DE NÓS MESMOS

Em Junho de 2016, nos foi dada a oportunidade de organizar um Encontro Internacional de Teatro do Oprimido na Escola Nacional Florestan Fernandes (o espaço de formação mais importante do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra). Desse encontro, para o qual viriam artistas e militantes de vários países, participaram militantes do Movimento Popular La Dignidad (MPLD) que fizeram parte da construção da Escuela de Teatro Político de Buenos Aires. Esses militantes explicaram tanto como funcionava seu movimento como essa escola. O La Dignidad é um movimento que tenta organizar a classe trabalhadora através da construção de espaços e serviços que atendam às necessidades concretas da população. Assim, o movimento criou refeitórios populares, escolas, creches, postos de saúde, corpo de bombeiros, uma rede de ambulâncias, uma distribuidora de botijões de gás e ainda outras estruturas. Cada uma dessas estruturas geram postos de trabalhos ocupados por militantes do movimento, e através delas tentam criar uma sociabilidade na prática que se distancie das relações impostas pelo mercado e pelo Estado. A Escuela de Teatro Político participava desse esforço à medida que respondia a algumas demandas do movimento, como de treinar os bombeiros-militantes para melhorar seu trato a população ou a construção de peças sobre violência doméstica para o coletivo feminista do movimento. Formava também seus alunos e alunas, vindos principalmente de fora do movimento, a maneiras de construir um teatro que não obedecessem às formas impostas em regime capitalista.



Primeiro Grupo da ETP (2017)
ETP em 2018, após o assassinato de Marielle Franco (Presente!)
Atividade no CTO (2017)

A ETP NASCE E VIVE DA RELAÇÃO COM OS MOVIMENTOS SOCIAIS

Foi o exemplo dessa escola que impulsionou a criação da ETP no Rio de Janeiro. Sabíamos que o cenário político carioca era totalmente diferente, e portanto não poderíamos ser a réplica da de Buenos Aires. A avaliação primeira era que não havia algo parecido o La Dignidad no Rio, e, por isso, a escola não poderia ser de um movimento e aberta para quem tivesse interesse por teatro político de forma muito genérica. A escola teria que ser dos movimentos e somente aberta para militantes. Em Abril de 2017, a primeira turma era composta de militantes do MST/Movimento Sem-Terra, o MTST/Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, do RUA_Juventude Anticapitalista e do Levante Popular da Juventude. Todos os movimentos tinham representação dentro da Coordenação Político-Pedagógica da ETP, instância na qual a direção da escola era elaborada. O objetivo primeiro da escola era de formar militantes para que possam voltar a seus movimentos para fortalecerem a construção de seus coletivos de cultura próprios.

Outra diferença importante era de que cada militante vinha imbuído das práticas culturais de seus movimentos - quando essas existiam. Muitas vezes, essas práticas tendem a representações muito idealizantes, aonde sujeitos poderosos e perversos decidem por livre e espontânea vontade ou sede de ganância oprimirem sujeitos heróicos e puros, cuja vitória é garantida em função de sua inquebrantável vontade ou pavimentada pelo sacrifício altruísta que garantirá a vitória das futuras gerações. Essas representações, herdeiras inconscientes do realismo-socialista, são as dominantes hoje nos movimentos sociais e, segundo a avaliação da equipe pedagógica, pouco contribuem para uma análise concreta da situação concreta, assim como dos caminhos possíveis para sua superação. Portanto, a Escola se posicionava como sendo feita com os movimentos, para os movimentos, mas também, em certa medida, contra os movimentos.



POR QUE USAR O TEATRO?

São variados os motivos. Num edital de vagas da prefeitura de Caxias para aprender teatro, em que foram ofertadas 30 vagas, tiveram 3 mil inscritos. Há um grande interesse que não é contemplado deixando assim espaço aberto para os movimentos que queiram utilizar esse desejo genuíno como forma de dialogar com a população. Os mais de 20 grupos de teatro da Maré discordariam disso, assim como o MST e Abdias do Nascimento, que exatamente questiona a origem do teatro no seu texto que abre o livro “Dramas para negros, prólogo para brancos”. O teatro é uma forma em que muito rapidamente pode se exercer pela pratica um crítica da divisão social do trabalho, seu modo de fabricação mais artesanal permite uma criação coletiva onde cada um assume vários papéis e, portanto, participa de um processo potencialmente mais rico e distante das disposições exclusivas ao qual o regime da mercadoria nos submete. Essa construção coletiva, quando o tema é a vida mesmo das pessoas que participam da oficina, tem alto grau reflexivo e ajuda então na melhor compreensão do real a nossa volta - e é só compreendendo que podemos transformá-lo. Ainda há muitos outros motivos para usar o teatro como ferramenta radical, mas não pretendemos esgotar esses motivos nesse texto.

Apenas uma das razões é o de poder mostrar, no âmbito da arte, que “se a classe trabalhadora tudo produz, a ela tudo pertence”. Isso quer dizer que a arte também nós pertence. Pertencer aqui não significa que somos donos dela, que podemos vendê-la, no atacado ou aos pedacinhos. Que a arte nos pertence, significa que somos nós que podemos torná-la melhor. Se a produção pertencesse de fato a classe trabalhadora, ela não seria caótica e destrutiva como de fato ela é hoje, a ponto de não sabermos se haverá amanhã. Ela seria harmoniosa, capaz de dar mais sentido ao mundo e a cada pessoa nele. Se a cultura fosse nossa de fato, todos os problemas, toda a tacanhez que vemos nos palcos pequenos burgueses (pequenos burgueses politicamente senão socialmente) desapareceria. Nós somos aqueles que podem tornar a cultura melhor. Todas nossas dificuldades, nossa falta de tempo, nossa falta de acúmulo, são, nos nossos melhores momentos, o espelho da dificuldade da classe trabalhadora de se apoderar do mundo. Nós somos os débeis e magníficos portadores do amanhã. E, por isso, apesar de todos nossos problemas, de todas nossas dificuldades, a ETP tem um sentido tão forte. E, se fizermos bonito, seremos a prova que é possível se sobrepor a essas dificuldades, que é possível sim que - tomando os termos de Benjamin - algo de novo e belo surja “com a sobriedade de um amanhecer”.